Aqueles que já assistiram ao filme laranja mecânica provavelmente se questionaram sobre as relações ali estabelecidas, sobretudo no que tange a liberdade individual de cada indivíduo inserido em uma sociedade perturbada por distintos conflitos. O filme traz uma discussão sobre duas questões que se apresentam como elementos importantes na
formação de uma sociedade regida pelos princípios de um Estado Democrático de
Direito: as liberdades individuais e o poder-dever de controle e coerção do
Estado sobre os indivíduos.
O protagonista do filme é Alex DeLarge, um jovem líder de uma gangue de
delinqüentes, que tem por diversão promover a violência, cometendo todas as
formas brutalidade que tenha vontade, não se importando com as leis e sem
nenhuma demonstração de humanidade para com o outro, pensando exclusivamente na
própria diversão. No decorrer do filme, Alex é traído por seus companheiros de
gangue e finalmente é pego pela polícia. Após ser preso, sofre um duro tratamento
de reabilitação através de um novo método, desumano, que faz com que a pessoa
fique totalmente indefesa com relação à violência do mundo. Passado o
tratamento, nos é apresentado um “novo” jovem, avesso à prática de atos
violentos.
O objetivo principal deste trabalho é confrontar a
aplicabilidade e a eficácia destes princípios -liberdades individuais e
controle do Estado sobre os indivíduos- dentro de uma sociedade dotada em
certos aspectos por valores e ideais que integram a corrente de pensamento
liberalista.
A respeito das liberdades de uma pessoa dentro da
sociedade que ela faz parte tomamos o exemplo do jovem protagonista do filme em
questão. Alex estava inserido em um contexto social onde a Inglaterra
encontrava-se dirigida por duas poderosas Instituições, Estado e Igreja, onde a
política de controle social se fazia da forma mais punitiva possível, em seu
comportamento é possível notar o conflito sobre sua inserção na família, fora
de casa, a questão da sexualidade, religião, enfim, diversos aspectos que nos
permitem relacionar seu estado comportamental e psicológico com a sociedade a
qual ele fazia parte. As cenas de violência, estupro e pancadaria acabam por despertar,
em nós espectadores, uma consciente apatia que, por sua vez, só vem a confirmar
o quanto somos inconscientes de nossos próprios conflitos internos e sociais,
geralmente deixados de lado como se de fato não existissem, conflitos estes que
são ignorados, justamente, devido a nossa falsa consciência de entendermos o dever
de agir de acordo com as normas impostas pelo Estado.
Na prisão, o poder da religião age sobre Alex no
sentido de fazê-lo sentir culpa pelos seus atos de violência praticados contra
a sociedade. Esta ação dos dogmas religiosos sobre o que é certo ou errado
fazer, de certa maneira, acaba por abrir caminho para o início do novo
tratamento que o jovem irá sofrer. Neste tratamento, as substâncias injetadas no
corpo da personagem tinham a finalidade de fazer com que toda vez que este se
deparasse com alguma cena de violência percebesse em si sintomas de
desconforto.
O resultado da experiência realizada pelo Estado
sobre sua cobaia, Alex, veio a funcionar de fato, pois toda vez que o jovem se
deparava com determinadas situações impróprias, sentia de imediato o temido
desconforto. Em contrapartida, Alex em nenhum momento deixou de sentir-se
mergulhado em seus antigos conflitos e desejos angustiantes. Então pensemos:
neste ponto, o tratamento falhou? De maneira nenhuma, pois, ora, para o Estado,
por meio da nova política de reabilitação proposta pelo Governo, seu objetivo
foi alcançado, uma vez que, mesmo Alex tendo continuado a sentir seus
agressivos desejos, ele já não era capaz de colocá-los em prática na sociedade.
Para o Governo o que de fato importava era que aqueles atos de violência não
mais fossem manifestados, independente de continuarem ou não guardados na mente
do jovem infrator.
Fazendo um paralelo deste caso com a situação atual
da sociedade brasileira, percebemos que diariamente nos submetemos às regras de
conduta social impostas pelo Estado a fim de colaborar com a manutenção da
ordem e da paz social, ainda que não estejamos de acordo com determinadas
regras e situações conflitantes que representam, na maioria das situações,
forte ameaça aos nossos direitos de liberdade, segurança, enfim, direitos
fundamentais assegurados pelo próprio Estado.
Na realidade, pouco ou nada importa para o Estado
nossos sentimentos, pensamentos, e ideologias, desde que, estes não venham a
ser manifestados de forma que interfiram na liberdade do próximo.
O pensamento, em si, é absolutamente livre. É
impensável imaginar que o Estado ou qualquer outra instância tenha condições de
controlar e conhecer o que se passa de fato na mente do outro. Esse tipo de
controle está totalmente fora do alcance do poder de controle social.
Ideologias, conceitos, pré-conceitos, são questões de puro foro íntimo.
Todavia, o poder-dever
de agir do Estado surge necessariamente quando esses pensamentos são
exteriorizados em suas manifestações. Se por um lado o pensamento, as crenças e
os desejos que um indivíduo possui é absolutamente pessoal e livre, o seu
direito de manifestá-los já não o é. E estão completamente inseridos em um rol
de atos diretamente controlados por normas jurídicas que têm por função o
controle social, objetivando promover a segurança de todos e atingir o pleno
equilíbrio e a paz dentro de uma sociedade.
Dessa forma,
mesmo que todos tenhamos nossos conflitos internos, nossas angústias,
ideologias e os mais impensáveis desejos, faz-se necessário a contrabalança de
nossas vontades com aquilo que se espera do comportamento de um indivíduo médio dentro de uma sociedade
submissa às leis daqueles que põem comida na boca de um delinquente em uma
visita de hospital a fim de obter o seu silêncio.
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